Terça-feira, 19 de junho de 2018
Nos primeiros dias de existência, nossa chegada ao mundo é registrada em um cartório de Registro Civil que, em nome do Estado, emite uma certidão de nascimento, nossa primeira identidade junto à sociedade.
A partir daí, os principais fatos de nossa vida civil (casamento, óbito, entre outros) também são registrados em cartório, e complementados por outros documentos como RG e CPF, emitidos com a função de identificar uma mesma pessoa perante diversos fatos jurídicos (matrícula em instituições de ensino, atendimento em postos de saúde, abertura de conta bancária, por exemplo).
E caso haja a necessidade ou interesse em dirigir veículos, precisaremos obter a Carteira Nacional de Habilitação — CNH, documento destinado a certificar nossa aptidão para condução de veículos.
Nossa “coleção” de documentos, contudo, não se esgotará aí, se desejarmos conhecer outros países, eis que nessa hipótese, necessária a emissão de uma identidade válida no exterior — o Passaporte[1].
Aqui, importante destacar também o grande volume de “investimentos” aportados pelas empresas, anualmente, em mecanismos para identificação de clientes e parceiros, sobretudo as instituições financeiras, dadas as regras de compliance [2] e os múltiplos documentos e certidões, emitidos por órgãos diversos, para identificação de uma mesma pessoa.
Deste quadro, extrai-se a urgente necessidade de se substituir este modelo tradicional e analógico de identificação (ineficaz, burocrático e sistemicamente deficiente) por um sistema de identidade único, digital e universal, mais condizente com os avanços tecnológicos e a velocidade de transações implantadas pela Economia Digital, Economia da Internet ou Economia da Web [3].
Em segundos, podemos enviar um e-mail para o outro lado do mundo, mas passamos horas esperando a emissão da segunda via do RG, ou a renovação de nossa CNH. Tal não faz sentido algum! É preciso otimizar a coleta de dados pessoais e acelerar sua verificação, além de modificar a forma de armazenamento e disponibilidade dessas informações, devolvendo a propriedade e posse dos dados relacionados à identidade civil aos indivíduos, efetivos proprietários de suas informações pessoais.
Isto é, há uma demanda urgente no mundo atual por uma identidade única, digital, soberana e universal que devolva às pessoas o poder de escolha sobre a disponibilização, ou não, deste ou daquele dado pessoal a terceiros, como mídias sociais e empresas cujo acesso a informações pessoais só deveria ocorrer mediante permissão dos cidadãos que, por sua vez, poderiam optar por interromper tal acesso a qualquer momento.
Apesar do desconhecimento de muitos, tal substituição do sistema tradicional de identidade analógica por um sistema de identificação universal e digital já é possível com a utilização da tecnologia blockchain que, apesar de se encontrar em estágio embrionário (semelhante àquele dos primeiros anos da internet) é utilizada com sucesso na Estônia cuja população, mais especificamente 97,9%, possui identidade única e digital [4].
Com um único registro via tecnologia blockchain, os indivíduos adquirem mais liberdade e controle direto sobre seus dados pessoais, podendo decidir o quanto, quando e a quem suas informações pessoais serão disponibilizadas. Dessa forma, a utilização de dados ficaria a cargo da liberação do próprio detentor da identidade, o qual poderia, inclusive, ser remunerado pela disponibilização de seus dados pessoais. Ainda, mantendo o controle da identidade com os cidadãos ficaria mais fácil a aplicação do “direito ao esquecimento”, em linha com as novas diretrizes da General Data Protection aprovada pela União Europeia, que será melhor explorada em artigo próprio.
Além disso, há uma melhora considerável na segurança com o gerenciamento de identificação através do blockchain que, dada sua descentralização, dificulta a penetração de hackers no sistema de identidade, evitando eventual modificação maliciosa de informações da identidade por terceiros ou até a restrição da população aos próprios documentos de identificação, sobretudo o passaporte, como ocorrido em países sob regime ditatoriais ou em situação de guerra civil.
Aqui, importante desmistificar a crença equivocada de que um sistema de identidade universal colocaria em risco a privacidade. Tal afirmação é, na verdade, consequência do desconhecimento do estágio em que a tecnologia blockchain se encontra. Fato é que não há somente uma plataforma aberta, nem um único blockchain onde qualquer pessoa possa consultar ou modificar informações, ou alterar o sistema como um todo.
O que existe são vários tipos de blockchains, classificados como “aberto” ou “fechado”, dependendo de como eles abordam seu modelo de segurança e ameaças. Podendo ser, ainda, públicos ou privados [5], permissionados ou não permissionados, com diversas estruturas e regras de governança possíveis de serem implementadas nas diversas plataformas existentes, que permitem a utilização desta tecnologia para as mais variadas finalidades, com aplicação aos mais variados públicos.
Considerando o sigilo e segurança necessários à implementação e gestão de uma identidade única, digital, soberana e universal, tais requisitos somente seriam alcançados por meio de uma Distribuited Ledger Technology (DLT), podendo ser uma blockchain fechada ou aberta permissionada [6], na qual apenas usuários autorizados têm acesso a todos os dados, podendo incluir ou suprimir informações e, alterar a rede.
O debate é longo e certamente demandará uma regulação em âmbito internacional, para que a tecnologia blockchain possibilite a criação de um sistema de identificação único, digital e universal em benefício de toda a sociedade, realmente apto a evitar abusos por governos e empresas, e permitir que cidadãos exerçam o pleno poder sobre seus próprios dados pessoais.
Referencias Bibliográficas:
[1] Guzmán, Liana Douillet. In: Oxford Blockchain Programme: What are some key applications of blockchain technology, both in the financial services industry and beyond. University of Oxford, 2018.
[2] Por exemplo, dentre as obrigações impostas às instituições financeiras a fim de prevenir a utilização do sistema financeiro para a prática de lavagem de dinheiro, ressalta-se identificar, manter atualizados e conservar os dados dos clientes durante o período mínimo de cinco anos, contados a partir do primeiro dia do ano seguinte ao do encerramento das contas correntes ou das operações (Lei 9.613/98, artigo 10, § 2° e Circular BACEN 2.852/98, artigo 3°)
[3] “(…)um novo modelo de se fazer negócios que utiliza informação e tecnologia como facilitadores da comunicação, transfer~encia de dados e transações comerciais”. Revoredo, Tatiana. In: A digitalização da sociedade: economia da Web (impactos e reflexos na sociedade atual). Jota. 19/5/2017. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-digitalizacao-da-sociedade-economia-da-web-no-brasil-19052017. Último acesso em 5/4/2018.
[4] E-estonia.In: e-identity. Enterprise Estônia. Disponível em: https://e-estonia.com/solutions/e-identity/id-card/. Último aceso em 03 de abril de 2018.
[5]Jayachandran, Praveen. In: Blockchain Explained — The difference between public and private blockchain. Publicado por IBM Blockchain Blog em May 31, 2017. Disponível em: https://www.ibm.com/blogs/blockchain/2017/05/the-difference-between-public-and-private-blockchain/. Último acesso em 03 de abril de 2018.
[6] Schrier, David. In: Oxford Blockchain Programme: Transforming enterprise business models”. University of Oxford. 2018.
Blockchain Strategist pela University of Oxford, e pelo MIT - Massachusetts Institute of Technology. Liason do European Law Observatory on New Technologies. Atualmente cursa Cybersecurity em Harvard. Convidada pelo Parlamento Europeu para Conferência Intercontinental sobre aplicações Blockchain e regulação de criptomoedas e ICOs. Participou do 1st Annual Crypto Finance Conference, do Fórum Econômico Mundial e Forum Mundial da Internet.
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